GERAL

Cangalha de memórias Por Marcelo Torres



Para início de prosa, chamemos, primeiro, um poeta. No rancho da fazenda Boitempo diz Drummond: “Carga/ e cangalhas/ dormem solidariamente com os tropeiros”. Outro mineiro, gênio da prosa, um certo João, o Rosa: “Miguilim montava no cavalo com cangalha [...], uma lata de leite de cada lado”.

Chamemos São Jorge, o baiano Amado, que conta histórias dos Capitães da Areia; um deles, Pedro, que é o chefe, fala para uma mocinha: “Quando eu te pegar tu vai ver com quantos paus se faz uma cangalha”. Do Ceará é vem Rachel de Queiroz, que n’O Quinze narrou: “O pequeno ia no meio da carga, amarrado por um pano aos cabeçotes da cangalha”.
E como hoje este vivente vivo em terras goianas, naquela caixinha no meio do mapa que é a federal capital, ouve cantar a poeta Cora Coralina, aquela que, em “Becos de Goiás”, diz amar os burros que passam em becos antigos de sua terra, “arrochados na sua carga, sabidos, procurando a sombra, no range-range das cangalhas”.
Pois é, de quando em quando uma sumida palavra — assim como uma sumida coisa, uma sumida pessoa — de repente reaparece como por encanto aos nossos olhos e nos deixa assim saudosos, nostálgicos, abrindo um baú de lembranças, ajuntando os cacos da memória, costurando retalhos do nosso tempo, do nosso mundo — um tempo e um mundo que ficaram para trás (como se quiséssemos ir para Minas, e Minas não há mais; como se quiséssemos voltar ao Junco, mas o Junco não há mais).
Uma dessas palavras — como se gente fosse, presente na minha infância, no meu mundo, aquele que parece já ser um velho mundo — é a cangalha, palavra-mágica que aparece no mundo de Drummond, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz e Cora Coralina, assim como poderia ser (porque também está) na voz de João Ubaldo, de José Lins do Rego e tantos outros crânios da prosa e da poesia.
Quando menino, no Junco, ouvíamos os pais, os tios, os avós dizerem coisas como: “Cavalo, se não dá pra sela, dá pra cangalha”; “Ninguém sabe melhor que o jumento onde lhe aperta a cangalha”; “É batendo na cangalha que o burro entende”. A cangalha fazia parte não apenas do cotidiano, como também do imaginário, do anedotário, dos ditados, das expressões populares do nosso mundo.
A palavra cangalha deriva, possivelmente, de ‘canga’, que é uma peça de madeira usada para prender juntas de bois que no antigamente puxavam carros de madeira (sobre esses carros, lembremos de outro ditado: “Não se pode colocar o carro adiante dos bois”). A cangalha também é uma armação de madeira que, em vez do pescoço, é colocada sobre o lombo de um animal de carga, em geral mula ou burro, servindo como utensílio para o transporte de bagagens, objetos, mercadorias e até mesmo de meninos — e os escritores acima citados não me deixam mentir.
Pois nos últimos dias, vinda da lavra, em livro, de um conterrâneo e contemporâneo — Luiz Eudes Cruz Andrade, um vizinho de muro na infância, primo e amigo de letra e copo e cruz — chega a palavra “cangalha”, toda poética, toda saudosa, já no título da obra — “Cangalha do Vento”, que poderia ser também “Cangalha do Tempo”, porque se trata de uma viagem no tempo, no espaço do velho Junco, nas memórias do personagem Fernando.
Trata-se, para todos os feitos e efeitos, de uma obra de ficção, como avisado no final do livro, mas são inegáveis, no conjunto das narrativas, os fortes traços autobiográficos. As narrativas ficcionais, um jorro de memórias, são construídas a partir de coisas reais vividas pelo autor e por amigos e parentes, desde a cruz fincada como marco da fundação do lugar até admirável mundo novo das tecnologias.
Ansioso por natureza e curioso por ofício, aqui ontem, na federal capital, recebi a “Cangalha do Vento”, enviada pelo correio, aqui chegada em cinco dias. Viajando nessa cangalha, uma cangalha de lembranças, em meio a 120 páginas, voltei ao velho Junco de outrora, lá onde ficou enterrado o cordão umbilical, lá onde estão nossas raízes, nossas memórias e histórias.
Li de uma deitada, na cama, como se sonhasse e nesse sonho desfilassem, como personagens, pessoas que fizeram parte da nossa infância: seu Sátiro Batista; Bispão e sua orquestra; dona Maria de Venança, seu Alfredo do ônibus, Zé da Perninha e sua velha botica, o trapiche de João Vieira, o bar de Zé Grosso, o caminhão de Artur Lopes, dona Tobé, seu Durval de Lolô, Zé Dedão, Lira Cruz, o alfaiate Nanu e muitos outros.
Escrito por Luiz Eudes, com ilustrações de Sam Costa, revisão de Antônio “Barrabaz” Batista da Cruz e a colaboração de Tom Torres, “Cangalha do Vento” é um livro que nos leva de volta, em narrativas ficcionais, ao velho Junco. Como bem disse o primo Tom Torres, em resenha pós-lançamento, o livro é uma “cangalha de metáforas”, mas é também, e muito bem, uma cangalha cheia de histórias, memórias, saudades.
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Marcelo Torres é jornalista, filho do Junco, mora em Brasília; autor de “O bê-á-bá de Brasília” e “Os nomes da rosa”

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